ELEGIA DA LONGA AUSÊNCIA
Este lugar é meu lugar no mundo,
por isso te escrevo
com encanto e dor.
A ausência perdura
e perfura
o escondido da alma.
Estou só,
mas estou vivo
e empurro
para bem longe
a tristeza que há
nos dormentes da memória.
Estou sossegado
no descampado,
onde moro em meio da noite,
antiga companheira de martírios
e estrelas,
as conto no céu abafado
de fevereiro.
O oleiro trabalha
o barro da existência
num cavalo azul.
Eu o olho com doçura
nesse momento madrugadeiro.
Sou guerreiro
detrás daquelas nuvens
que passam ligeiras,
e aumenta a ausência
que se alonga no horizonte
num largo caminho
sem pontes.
Perquiro o que me sobra
dos meses,
passo os calendários
montando a vida
meu bem meu mal
quando saio
pela porta do inferno
e vou dar em lugar algum,
mas um dia
me trará o mar,
minha pequena salvação,
depois voltarei a terra
na ogiva
de seu esplendor,
contarei os anos
que tenho guardado,
noite
meu jeito de viver
vicissitude
à margem do caos
possuído
de amores amargos,
dureza
que não ama
e abalroo
o que soa
como grito
no infinito
do meu olhar
e fabrico aros de ouro,
meus brinquedos velhos
no fundo da casa,
lírica rosa nascia
onde tocava
tua mão macia,
era dia bom
para o meu pobre coração,
eivado de medo
e protegido por cordão
de ouro
da Virgem Maria.
Um toldo longo
me protege do vendaval
que se anuncia
no avental
das horas.
Quero melhorar
dessa melancolia
que me atordoa
nesta urbe
de cimento e cinza.
A besta,
o grito das ovelhas
me cercam.
Peço perdão
e sigo adiante,
chuva e areia
na praia
que não existe,
como jamais viste.
É um auroral estranho,
o que me ajuda
levar o rebanho.
Sou um potro abandonado
que trabalha só
nestes descampados da pampa.
Penso nos teus olhos
e às vezes choro,
não por mim
que fui abandonado,
mas sou amado
dos que me cercam,
e assim me salvo.
Talvez a vida
seja só isto,
e assim de sobressalto
no alto
do cadafalso
colocar meu corpo,
armo meus alforjes
de esperança
e não salto.
Permaneço imune
diante do adeus,
os florins da guerra
ainda são meus.
Terço uma pampa
branda,
mas brava
numa avenca branca
que abraça o desamor
dos meus itinerários,
neste diário sobrevivo.
Viver é ir à deriva
com face altiva.
Porto Alegre, 26 de fevereiro de 2010. Do livro Amores Amargos.
PEQUENA ELEGIA DO QUE PERDI
Perdi tudo que tinha
na linha alva da alvorada,
me levaram a lugar ermo
e roubaram meu silêncio
e a melancolia que trazia.
Uma velha fotografia
de teu amor
foi-se nesta tarde
que aturdia
minha memória,
fico agora mais livre
para o espanto,
é bem presente
em livro
léxico
aberto
certo
de todo o escuro.
Vazo os muros
da estrada
e procuro no campo
meu lugar e meu encanto,
onde canto forte
e desenha da vida,
em estrada só de ida.
Porto Alegre, tarde de 2 de fevereiro de 2010. Do livro Amores Amargos.
O Que Conheço é Pouco
O que conheço é pouco,
mas já me basta,
é haste de roseira
que abre flores brancas
antes da primavera.
Dou-me a tudo que vejo
na ladainha
da linguagem,
esta viagem,
onde estou metido,
desde que nasci.
Fico quieto,
muito quieto,
para que brote o poema,
esse é meu tema
bem dileto,
ordeno na página
conforme morada,
a forma e o conteúdo.
Sou Miranda, o homem
me pertence,
os Goulart,
açorianos, franceses,
dos primeiros que pisaram
o solo do Rio Grande,
em Rio Pardo,
onde há o cemitério dos Goulart.
Meu bisavô, Perseverando Goulart,
de mil oitocentos e cinquenta e seis,
é o mais antigo
de que tenho notícia.
Depois rumaram para São Borja,
se espalharam por Itaqui e Uruguaiana,
onde vim ao mundo
para navegar esse mar
sem fundo.
Cruzei milhares de cidades,
nessa vontade de andar
que me deu
minha vó Francisca Goulart.
Depois tenho andado sozinho
por alqueires de pampa
de verdes indomáveis,
vão junto meu cão e meu cavalo,
adivinho o eito da solidão.
Porto Alegre, tarde de 3 de fevereiro de 2010. Do livro Amores Amargos.
A UM DIA DA ETERNIDADE
Para onde vou não há retorno,
os ventos zunem nas distâncias,
nas lonjuras mais ermas.
Estou a um dia da eternidade.
Mas há ainda um ranger de dentes
das plenas rebeldias.
Teu amor não vem,
teu amor vem tarde,
como a paisagem da janela de um trem
já não vem.
Teu amor
amortece
na mesa vazia de um bar.
Esguia e bela,
somes nos nomes
que a paixão não traz.
O que bebo é vinho
e ventania,
loucura dos santos,
que se perderam na procura
do que nunca tive.
És bela,
o desejo é belo,
e basta.
Longe de casa,
eu moro na rua Lima e Silva,
em Porto Alegre,
no fim do mundo.
Só o coração compreende,
que a paixão não traz,
o barco da ternura jaz,
neste rio Uruguai
da minha vida inteira,
correndo para o Mar del Plata,
onde ainda se ata
a dor da vida e a dor da morte,
linho na bruma da manhã,
metade sonho, metade morte,
apenas um cesto de romã.
Um dia irei além do impossível,
serei ainda o barco de um só rio.
A nudez é plena,
a nudez da água navega.
Quem me conhece pensa que sabe,
mesmo assim, não sabe
da solidão da porta dos hospitais,
onde nunca entrarei.
Prefiro a morte súbita,
alma voando,
num repente,
um breve momento,
frente a Deus.
Tudo é solitude.
nos descampados da pampa,
minha lei e minha origem.
As flores crescem para além
dos muros da minha cidade,
liberdade
em tudo o que arde.
Sereio o que sonhei,
a mil anos daqui.
Serei,
como a pérola
que vive encantada
na sua concha,
no fundo do mar.
Irei ao mundo,
como fui um dia
à escola.
Só os deuses
entendem dormir
entre estrelas,
e acordar sem elas
e poder vê-las
em cada vão da tarde.
Porto Alegre, noite de 21 de março de 1998.
Do livro “Quarteto dos Mistério, Amor e Agonias, 1999. Considerado obra prima, no prefácio que faz Gerardo Mello Mourão, único brasileiro indicado ao Nobel de Literatura, el 1979, pela Universidade de New York.
XXIV
Tu tens que tentar
tocar as estrelas,
destina toda a tua
vida para esta sorte.
Não fiques somente em vê-las.
Acorda-as com o brandir do verso,
que sobe do amor, antes imerso,
e vai luzir com elas
no esplendor da eternidade.
Olho lasso diante da amplidão,
dou mil passos além da solidão.
Meia lua gris, morte e incêndios,
ao esmeril do vento.
O tempo dorme e é inútil,
enorme é a dor que me assedia,
e não estanca esta sangria.
Rosa branca, rosa branca,
és meu mistério e missão,
és quando abril assume
o tendal alto das estrelas.
Aí estou coberto do que amo,
sirvo a mesa e proclamo
que o amor reina mil anos,
e um pouco dele, talvez muito pouco,
passa por nossa alma,
que é lavada no orvalho da manhã
e resplandece na sombra branca
da minha mão magra,
que escreve, dolorosamente, o poema,
esse dilema de uma vida inteira.
Minha covardia é amar demais,
e depois chorar a perda de quem se ama.
Mas sem isso a vida não bate na alma.
Melhor amar e ir morrendo nos seus sulcos,
do que deixar para outro dia o que é diamante,
mar, azul, manto de pérolas, ramo de flores,
que nos envolvem por dentro do corpo.
Sou às vezes navio sem porto,
mas navego os milagres da paixão.
Canto de Sesmaria
Porto Alegre, roteiro da paixão
I
Porto Alegre Porto Alegre
alegria
para nós que precisamos
nós que somos mais tristes
que alegres
e vivemos esse tempo
essa morte
esse pássaro de febre
XXVIII
Porto Alegre Porto Alegre
eu te canto para além
de toda a miséria
porque em ti vive o melhor de mim
e somos a mesma semelhança
a luzir às frestas
desamparadas do meio-dia
Porto Alegre, roteiro da paixão
Ponto de Partida
A Alceu valença
Não sonharei o impossível
nem aurora
a luz vem luzindo
sua desesperada agonia
o passado move
sua chuva de caspa e cinza
Não me queiram cordato
sou sempre o reverso
o horizonte incabado
quando me julgam morto
renasço com os caídos e mato
para morrer de novo
à lucidez das palavras endurecidas
Alerta, neste quarto emprestado
à beira do coração
me sustento de miudezas
substantivos, verbos, adjetivos
complementos do cotidiano
e construo a esperança
como quem se salva
para salvar
Alerta na pampa
casa e coração
cinza no osso da dor
cinza no rosto do amor
arsenal da solidão
arreios da vida inteira
Não sonharei o impossível
revoa a angústia
como pássaro sem prumo
nossos mortos, nossa morte
escuro silêncio
espaço sem ar
desequilibrando no céu
o algodão das palavras
Desequilibrando no céu
as aves de pouso alto
o alarme geral
das armas e das canções
Desequilibrando, desequilibrando
Estado de Alerta
Transitório
Amanheço com a chuva
dos anos da memória
e nada exaure mais
que este gosto de sal
E quanto queria
amanhecer longe
destes páramos
e perder com justeza
e sorrir com a vida
mas nada transporta
ou redime
os amigos mortos
A vida dói na alma
como uma tina de fel
e guardamos o segredo
de continuar vivos
para incrível surpresa
dos que comandam a vida
Memorial
Poética brava
A Guilhermino Cesar
O poema é o sistema
onde a palavra
grava o conteúdo
grave o feroz de tudo
grava o que não tem
princípio ou término
e só finda num fundo
de olho
onde a vida é um retrato
transparente da verdade
O poema não tem dilema
entre um susto e outro
sobrepõe-se por camadas de
som
é um potro vidente
armado até os dentes
da fúria doce da imagem
Solidão Provisória
Pequena elegia para mais uma esperança
Chegarás sempre na última palavra
na tarde noturna do desejo
onde a paixão se recolhe
e deposita até os fantasmas
febris do desespero
Chegarás na bruma
das sílabas sonoras do amor
o ar sonando no sonho
como uma nuvem que se perdeu
e fica boiando no horizonte
Chegarás como a sombra
quente do sol
esquecida no adeus
Chegarás para dizer
que o amor revela-se
à luz noturna das palavras
Amor de amar
Artefactos para cumprir a vida
I
Nasci em Uruguaiana
com todos os benefícios da memória
O rio Uruguai é o mar de infância
pendurando no rosto
a fuselagem de meus ossos
II
Quando indaguei
no transe das coisas íntimas
agora prendo nelas o tambor do meu desejo
as fatias desprovidas destes dias
Quanto dói a lonjura
que fecha nossa infância
e mais se sabemos rompido
o caminho da lembrança
III
Onde tenho a injustiça
me detenho
não há entrave no meu canto
e canto (prova mais dura
de ser presente – não aparente)
o que resiste e sem demora
veste a roupa de sua hora
Para tanto
asilar as dores de cabeça
em carreiras
despedir dos relógios
a despedida
ser de resguardo
nos guardados
da esperança
Asilar o primeiro amor
o coração desabitado
e nesse arredo
suspender dos meses a solidão
arredar o medo
sem o segredo do transporte
ao visto vigiá-lo
como pedaço do próprio corpo
IV
Em todos os nortes e ventos
disponho os trastes inábeis
já auferi a vida outro trajeto
e abandono de vez
a ressaca dos domingos
Haverá quem pergunte
coisas mais solenes
haverá quem indague
no branco das camisas
nas gravatas e sapatos
minha altivez
Não isso não
a vida é corredor sem regresso
derivando derivando
aonde se abandona
o mofo do rigime
V
Ah! uma canção
lonjura de pó
nas paredes que me cobrem
Tanta morte enfeixa
minha camisa de brim
que morrer faz a diferença
na distância
onde meu sonho se anuncia
Tanta morte equilibra no meu ombro
no lado esquerdo
onde escondo o pensamento
que viver é ir com todos
sem nunca se perder
VI
Na linha do horizonte
a justiça equilibra seu pronome
é deveras distantes
é deveras enrolado ao falso de seu nome
nos documentos vigentes do sistema
A justiça é porto seguro
represa de vento
onde desembarcamos a vida
é porta operária
onde o tempo é arma acesa
e fantasma
VII
Onde tenho a injustiça
me detenho
Sou desembarcado
não por desejo
nos domicílios de mil novecentos
e setenta e dois
num abril que resseca minha idade
Sou desembarcado
e desde muito
teço junto aos irmãos
nova rede nova arma
Não exaspera minha descida
nesta hora
aprendi do caminho
como a serpente
o veneno de si mesma
Aprendi não de repente
a rebeldia elementar
e nos seus volumes cinzentos
fundei minha casa
Golpe a golpe
desmembramos o dia
o difícil instante
onde fundamos nossa casa
VII
A vida é o trajeto vivo
cumpre movê-la
suspendendo nos dentes
o mal nascido
mas até amanhã
onde até dezembro
colocar a mão desprovida
o coração maduro que despencou ?
O amor
ainda censurado
é permitido às palavras
nelas fazemos muradas e abrigos
em dia de boa paz
o roto amar da vida
Onde antes que a noite
permita todo seu pasmo
colocar o sal e a pólvora
e tristeza e as horas
roubadas dos relógios ?
IX
Ah! canção para cumprir a vida
sempre adiada
artefacto de sonho
para cobrir o que me falta
o que me resta
Todo o desigual
é uma distância sem perdão
e mofa em nossos olhos
Memorial
Balada em Uruguaiana para Tabajara Ruas
A fúria da linguagem desce aos infernos.
A alvura da palavra brilha no pampa.
Somos o que se escreve ou canta,
luz divina, diamente interno
que ilumina a página branca,
onde a noite põe suas estrelas
e é para poder ouvi-las e tê-las
que o fogo da aurora se levanta,
deixando em ti uma loucura santa.
O teu ofício paira no vento,
mais rápido que o pensamento,
vai longe, iluminada mão,
vai dentro, bem perto, no coração.
Trabalhas o que move o homem,
o cristal dourado da vida,
e se o amor e paixão somem,
deixando a alma perdida
inventas na hora outro destino
onde voltamos a ser menino.
Amores imperfeitos
Amor de amar
Dispo-me dos pudores da forma
coloco meu ouvido no teu peito
e deixo-me levar
na emoção de quem procura
teu rosto na sombra
e te purifica te revela
te orvalhece te incendeia
e comparece em ti
com estas palavras
trazidas da alma
Se chegarei à poesia
não o sei
apenas escrevo estas linha na água
para brilhar no céu
um dia
recolhidas pelas nuvens
ou espremidas a longo véu das chuvas
Agora desliza minha mão
a auscultar a memória da tua pele
a viver nela o tempo impensado
dos navios perdidos
viver na tua pele
todos os naufrágios
e renascer na palma
do amanhecer
Agora a vida é renascer
sempre em ti
Um pensamento fugidio
às festas da aurora
é teu nome em meu coração
a romper o silêncio
um risco de luz
transfigurado em tua face
é meu guia
e seguirei
cuidadoso
como um cão
e seguirei teu cheiro
pela noite imensa da paixão
Seguirei
até que te convertas
na própria tinta das palavras
e venhas a escrever
desde esta janela de espanto
que é o mundo
luz redonda de infinito
Seguirei contigo
ainda que estejas longe
e te desfaleças
noutra solidão
noutro minuto de esperança
e te consideres ausente
como são ausentes as distâncias
mas te chamarei baixinho
para te estelar
nas proximidades mais íntimas do amor
Para te estelar
na longitude dos espaços
das geografias
que o amor tem outro calendário
outro itinerário
E és tu, namorada,
que me dás a música dos versos
seu rebentar na carne
Amor de amar
Balada de Lisboa
Há pedras neste céu
que foram estrelas
no coração do poeta.
Ninguém te limita,
ó Tejo amantíssimo,
demônio de água doce.
Tantos são pessoa,
a lei e sua fome,
que o cristal do poema
dá teu nome
ao que ilumina
às raízes de Lisboa.
Vou caminhar estas ruas,
como quem recorda a infãncia,
onde seremos a menor distância
entre a flor o fruto e tua
geografia amorosa,
onde o sonho desperta,
e a última estrela
se deixa no céu,
alerta.
E a vida, móbil azul,
fareja estradas no mar,
cristais de um canto insone
que vaga e noutra vaga
some,
e o amor que sai
da alma gaúcha e sem fronteira,
que ganha o mundo e vai
morrendo em ais pelas esquinas
onde o homem e a flor respira,
e cumprimos a dolorosa sina
que inventa a lâmina que o fira,
ardendo em mares,
ó senhor dos naufrágios
Há pedras nas vastidões
dos sonhos dos que navegaram
o mundo sem mapas,
dos que navegam o coração das palavras,
O verso que
só
a outro verso
se ata,
como a teia
do amante e do amor,
que ilumina
evaporando-se na dor
que só tem quem olha o roçar da eternidade.
Comigo estão os que sempre estiveram,
ferindo a linguagem no seu vôo livre,
o que alaga e veste a sombra do tema:
Sá-Carneiro, Seabra, Camões, Eugênio de Andrade,
os que batizam em fogo os cantos da aurora,
os que morrem na vida e renascem no
poema.
Lisboa, 10, 11, 12 de novembro de 1996.
Quarteto dos Mistérios, Amor e Agonias
Nada existe
Nada existe do outro lado do mar,
a não ser o azul que sonhamos,
as parreiras densas de algum vinho,
havido nos barris do sonho
e envelhecido na resina espessa
que em nós ensina a solidão.
Ah, coração, solta teus fantasmas,
o que dorme no silêncio mas vibra
antigas cinzas, vidros, espelhos,
paisagens esquecidas, retratos.
Ah, coração, transporta a acidez,
do verão, os utensílios diários da insônia,
o que me silencia os nervos
e arde neste vento de dezembro,
violino enlouquecido.
Nada existe do outro lado do mar
que não sejam velhas cartas,
poemas interminados,
o silêncio das palavras.
Nada existe do outro lado da vida,
animal exposto a visitação pública.
Passageira como nós, que não vai ao mar,
e morre em ais pelos caminhos.
Livro do Passageiro
Madrugada santa
O prumo da noite pende
para o lunar da aurora,
entre estrelas e bruma,
a madrugada azul se levanta,
diamante mais duro e mais puro,
o coração é quem canta
as esperanças mais longas,
é uma milonga, uma canção de fronteira,
que nos leva em luz à porta verdadeira.
Sou tudo o que fiz e o que faço,
espada que corta o raio e a injustiça,
brilha alto, brilha, a força do seu aço,
um pedaço de esperança persegue seu fio,
pedras e musgos do velho rio.
Toda minha vida nesta noite acordada
é filha primeira do solar da madrugada.
Sozinho, no vazio noturno dos meses,
vejo a vida luzir pelas ramadas,
e, às vezes, sem saber, ela escorre
por nossos dedos, entre violões
e vinho, um pouco do caminho esvai-se.
Ah, ais perdidos nas ausências,
na lágrima fria do adeus.
Madrugada santa, madrugada do meu sonhar.
Na Cidade Baixa, em Porto Alegre, conheci
o mais denso de tua luz e de tua febre,
que sempre, e cada vez mais, nos leva
ao escondido da última estrela.
Madrugada santa, madrugada azul,
quem te canta chega sempre ao arrebol.
Aqui ao sul do mundo, te falo em espanhol:
El mar es tu caldal, la pampa, tu cantar.
Todo está escrito em las alfombras
del cielo. Contigo voy a morirme.
En tus ojos titilan los verdes
olvidos de mi vida ya vieja.
Só aqui, vivo o destino esquecido,
num antigo bar, num livro de poemas,
antigo como Drummond, Pound, ou Lorca
ou Neruda, ou Machado, ou Dante,
que o poema muda em estações.
Diante de ti, amada,
entre outras, a mais querida,
que dorme na velha cama de minha alma,
perdida nos sonhos silentes
que desde a infância
ferem de luz as possíveis distâncias.
Madrugada azul, esmeralda,
a esmo me vou, ao esmeril do canto.
Um novo tempo lapida seus cristais.
Vou agora para não voltar jamais.
Porto Alegre, (Madrugada azul de toda a minha vida)
22 de março de 1999.
Trilogia do Azul, do Mar, da Madrugada e da Ventania
Livro – Cantos de Sesmarias
CXI
Eu que sou filho
do rio e de pampa,
não mudo minha estampa,
quando os pátios
me dão assombros
ou perda de memória,
por escombros,
sobrevivo
e alinho
novos rumos
à vida,
ó doce e bela
e eterna companheira.
Sou sem fronteiras,
e falo com todo o mundo,
invento a linguagem
ao longo da grande viagem.
O meu sustento
vem do que invento.
Palmilho o trigo
e o milho,
sigo o trilho
que vai dar
no mar.
Eu amo
tudo o que tenho.
De onde venho,
a estrela sempre
se levanta
na noite imensa.
Corro na frente
do vento.
Sou o que pensa
e depois constrói
o movimento das águas.
Do Livro “Nunca Mais Seremos os Mesmos”
CCXXXIX
Último olhar sobre este livro
tecido na aurora de todas as idades,
o que vai célebre rumo as tuas mãos,
cobertas de orvalho e de espanto.
Rebelde é meu canto,
que se multiplica em rebeldia
que trabalha à noite
e não vê o dia,
que se esparrama
na rama verde do mar,
e sobe as montanhas,
que desconhece o banal
e vai tangeando o universal
com a alma honesta
e uma voz que atesta
a minha terra e meu endereço,
onde componho secreto
do movimento deste animal doméstico.
Baixo a cabeça e rezo,
os cânticos de Davi
que tanto prezo,
como última forma
de amor à palavra
e ir morrendo
à sombra de sua lavra.
CCXL
Por último, este final amargo,
barcos que não encontram o cais
e viajam uma bruma bem fina
que nos ensina vencer as distâncias.
Verbo verde que verte vórtices novos
e luz no pasto o som do verbo amar.
Eu troco de amor mas não de poema,
ele é o tema de toda a minha vida.
Vou com os loucos vencer os ventos,
leio secretamente o pensamento
e levanto alto um lençol de estrelas.
Novamente o livro que teço termina,
limpo um velho retrato da infância
e procuro nova palavra cristalina.
O convidado de honra para a V Festa da Poesia de Diego Mendes Sousa ( a ser realizada na Parnaíba-Piauí) é o grande Poeta Luiz de Miranda. Apresentamos o roteiro poético de nosso maior poeta latino-americano, em um passeio por alguns de seus 35 livros de poesia publicados.
São poemas que representam a força misteriosa da voz do bardo, profeta e iluminado Luiz de Miranda, provocando imediata admiração. É canon, de uma intuição fértil e comprometida com a beleza, com o divino da vida.