Entrevista com Luiz de Miranda por José Édil de Lima Alves, Doutor em Letras – UFRJ – Professor na ULBRA/Canoas
1 – Tua carreira, hoje afirmada como um dos maiores poetas brasileiros, começou, como se sabe, no fim dos anos 60. Sob que influência(s) ela se deu e se houve Mestre(s), quem seria(m)?
Comecei a escrever com 17 anos, em Uruguaiana, e tinha como minha Mestra, a professora Domingas Faraco. Depois fui morar em São Paulo, em 1966, quando conheci o poeta Cassiano Ricardo, que leu dois livros inéditos que escrevera. E leu e não gostou de quase nada, mas disse: tú és poeta ! leste tal coisa, leste aquilo. Ao final deu-me uma lista de vinte e quatro livros para ler. Li em profundidade. Eram ensaios, críticas, exegese poética, e alguns poetas que eu não conhecia em profundidade. Li tudo e rasguei os meus dois livros, e comecei do zero.
Os olhos cheios da modernidade, das vanguardas dos anos 50 e 60. Tudo isso influenciou no trabalho que se apresenta em Andança.
Há muito trabalho de linguagem mas já, como antes havia a preocupação com o social com uma poesia comprometida com seu tempo e realidade cultural e política. Uma poesia que viria para mudar o mundo, ainda que isto fosse uma utopia.
Eu sempre baixei a cabeça e escrevi ao lado dos humildes e dos humilhados. Saliento desse tempo Poema da Terra, Poema do Peregrino, Poema para Che Guevara e Martin Luther King.
Cassiano Ricardo foi meu Professor de Poesia, gentil e generoso, mas eu não segui o poema de nenhum daqueles que li, eu já tinha uma espécie de estilo intuitivo, feito de solidão, da pampa e do Rio Uruguai, feito da pedra angular de Uruguaiana, o lugar onde nasci, o coração da pampa.
2 – Na tua primeira publicação, promovida pelos Cadernos do Extremo Sul, de Alegrete, então sob a direção de Sérgio Faraco, o título é sugestivo: Andança (1969). A temática revela-se fortemente comprometida com aquilo que a crítica literária chama de “literatura de combate”, ou seja, um texto que revela o espírito do autor em defesa da “justiça social”. Mas ali também está presente a preocupação do poeta com o instrumento/objeto da poesia: a palavra. Gostaria que comentasses esses dois eixos de interesse e a realização de ambos no(s) poema(s).
Nó viviamos sob uma ditadura militar, e eu morava em São Paulo, o tambor político social e cultural do Brasil. Logo me envolvi no processo revolucionário que pretendia mudar o país, através da armas e da ideologia. A minha arma era a palavra, irmã de insônia, deusa de todas as minhas orações para qual voltava todo o meu coração. Sabia literatura como engajada, comprometida com o povo e suas transformações sociais, mas sempre procurei a “poíesis”, fugi do palavrório e do panfletário. Tinha que me opor à desgraça que grassava sobre minha pátria, com a ternura que vem da força da arte, do poema. É estranho que anos depois me distanciei do primeiro livro, quase o renegando. Contra a tua opinião que o considerava lapidar. E para meu espanto, em 1997, quando plublicava-se minha Nova Antologia Poética, selecionada pelo poeta português José Augusto Seabra, considerado a maior autoridade no mundo em Fernando Pessoa, ele colocou o maior número de poemas de Andança. O livro tem 17 poemas ele escolheu 11. Depois eu acabei inevitavelmente cortando alguns. Assim o autor, às vezes não é o melhor leitor da sua obra.
3 – A partir de Memorial, (1973), publicado sob o patrocínio do Instituto Estadual do Livro (IEL), pode-se afirmar que passaste a ser (re)conhecido pela comunidade gaúcha, enquanto escritor. Alguns versos e mesmo poemas daquele livro mantêm o frescor das coisas perenes, como aquele “América, América” que é capaz de falar a jovens de hoje, como verifico em minhas aulas. E o mesmo se poderia dizer de Solidão Provisória (1978) e Estado de Alerta (1981), livros que te revelaram para o Brasil e cujo eixo temático estão muito próximos. Como tu vês aqueles poemas já tão distanciados no tempo?
Memorial, Solidão Provisória e Estado de Alerta fazem parte da trilogia dos Anos de Chumbo. Poemas de forte conteúdo social mas poemas profundamente trabalhados na estética poética. No sobressalto sempre novo do poema, já caminhava por um lirismo comprometido e já aparece em Estado de Alerta minhas Elegias de Amor. Pretendo republicar estes livros sob o título: Trilogia dos Anos de Chumbo. Estes poemas são muito vivos em minha sensibilidade, acredito que cheguei a um patamar de qualidade que até hoje me surpreende, meus personagens poéticos eram homens que tinham doado suas vidas em nome da liberdade e da revolução social: Savador Allende, Ernesto Che Guevara, Vladimir Hersog, Carlos Lamarca, Mario Benedetti, Pablo Neruda, Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella, Edson Luís, Ferreira Gullar, Geraldo Vandré, Augusto Boal, Paulo Pontes, Moacyr Félix, entre tantos outros.
4 – Afirmei acima que teu primeiro título publicado é emblemático: Andança. E a afirmação baseia-se na presença, em teus poemas, de cidades múltiplas, a partir de tua terra natal: Uruguaiana. Porto Alegre, Roteiro da Paixão (1985), por exemplo, fala por si desse carinho que tens por cidades onde viveste e/ou que tens visitado nessas tuas andanças de toda uma vida. Seria interessante que falasses mais detidamente sobre o impacto que elas exerce(ra)m sobre teu espírito criador.
Eu sempre quis ir embora de Uruguaiana. As grandes cidades me chamavam. Em 1996, abandonei a Faculdade de Zootecnia, fiz uma parada em Porto Alegre, fiz amizade com Mário Quintana e fui morar em São Paulo. A maior cidade do país. É uma mudança de 360 graus. Logo me envolvi com o melhor da cultura brasileira, o que deu uma guinada na minha vida e no meu poema. Nessa época com um amigo meu fui levar uma kombi para Aracajú. Foi uma longa viagem ao interior miserável, às feridas mais graves de nossa injustiça social. na volta, fiquei uns dias no Rio de janeiro, a cidade mais linda do mundo, onde mais tarde morei, de 1976 a 1979 e de 1983 a 1985. Conheci Drummond e os escritores importantes do país. Em 1972 fui a Montevidéu depois a Buenos Aires, depois para Santiago do Chile, onde permaneço uma temporada e conheço Pablo Neruda. Em 1975 fui morar em Buenos Aires, no Hotel Gran Via, na calle Sarmiento. Aí conheço Ferreira Gullar e Augusto Boal no exílio, e Paulo Pontes que estava de passagem. Fiz amizade com grandes poetas argentinos: Juan Gelman, Chico Urongo e Miguel Angel Bustos, que se tornam personagens do meu poema Buenos Aires, Buenos Aires. Chico e Bustos foram assasinados pela ditadura argentina, sobrou Gelman, que teve o filho assasinado pelos militares. Em 1970, eu já estivera em montevidéu e fizera amizade com Mario Benedetti, para mim o escritor mais importante do Uruguai e a quem dedico a Trilogia, meu último livro. Em 1975, conheço Jorge Luís Borges, o grande escritor argentino. Um homem cego, sábio e de poucas palavras. Estive na Europa, em várias cidades, onde escrevi as baladas de Lisboa, Madrid, Paris. Viajando com meu amigo Alceu valeça na década de 80 conheci quse todo o Brasil, todas as capitais e as principais cidades do interior. Os shows em ginásios aconteciam para todos os lados, com convicção as cidades ampliam meu horizonte e já me deram muitos poemas está para sair um livro sobre este assunto chama-se livro das cidades onde canto aquelas que amei que me emocionaram e onde ficou um cristal incendiado no meu peito. São mais de 30 cidades poematizadas.
5 – Com Amor de Amar ((1986), teu leitor percebe uma mudança significativa no que chamo aqui de “eixo temático”, embora permaneçam algumas constantes, como a presença das cidades e dos camaradas e parceiros que foste conquistando em tuas trajetórias. Como explicas e/ou justificas a mudança em tal eixo temático, em que Eros tem uma forte presença?
Como já disse, o Eros sempre esteve presente em todos os livros anteriores, só que agora ele passa a ser o agente primordial da minha poética e forma uma Trilogia Amorosa com: Porto Alegre, Roteiro da Paixão, Amor de Amar e Amores Imperfeitos que pretendo reeditar sobre o título de Todos os Amores. O amor ao meu semelhante sempre foi pedra fundamental do que escrevo, o amor da mulher amada, perdida, havida ou desaparecida tem sido uma constante de um homem solitário, que ainda menino fui sozinho e tive que vencer os vendavais, as tempestades, com a força do meu destino. Eu já fui ao olho do furacão e voltei.
6 – Com o Quarteto dos Mistérios, Amor e Agonias (1999) novamente o eixo temático é deslocado, possibilitando a exploração de outros rumos, manifestando a vivência de outras experiências. Pode-se afirmar que neste livro há uma forte presença do místico, do transcendente, da preocupação com o sobrenatural, com o Ser Superior. A que se deve mais especificamente essa tendência que te possibilitou a concretização de poemas belíssimos, como aquela “Balada de Madrid”?
Tem uma luz dourada que me acompanha desde o dia em que nasci e que se manifestou de maneira compreensível aos 7 anos. Aos 9, me livrou da morte, no desastre em que morre meu único irmão José Newton Miranda. Com o tempo ela ía e voltava, nessa trajetória fui estudar teologia em São Paulo de onde fui expulso por problemas políticos. Assim nos últimos 15 anos tenho me dedicado de corpo e alma na busca da luz dourada de minha vida, a luz da Casa de Deus. Fui preso e interrogado pelo maior torturador do Rio grande do Sul, Pedro Seeling, e nada aconteceu comigo. Segundo a lei sagrada da luz dourada, ninguém pode tocar impunemente no meu corpo e tenho de morar no último andar, ainda que morra de medo de altura, para que ninguém caminhe sob minha cabeça. E eu nunca escolho apartamento ele surge quase do nada. Este livro fala de Deus como fala da dor do homem sozinho, social e pessoalmente, da paixão, esse navio de sons e ventos espantados da pampa que me leva pelo mundo. O amor, esse animal mais leve que o ar está presente em todos os poemas. O amor do semelhante, o amor do meu amor desgasta mas é ainda nutrido da esperança e tem o amor de Deus. A esperança é o grande diamante da minha poética, somente num poema ela não viceja.
7 – A tua veia de poeta para jovens foi superiormente reconhecida com o prêmio que recebeste na Feira de Bologna pelo Livro dos Meses, com várias edições publicadas. Embora haja em preparo um outro livro (A,E,I,O,U, O Começo do Amor) há alguma razão para não explorares mais esse eixo?
Quando se escreve para adolescente tende-se fazer muitas concessões poéticas para que uma pessoa que recém está entrando na literatura tenha condições de absorção. E como sabes meu poema é rigidamente trabalhado. Fiz estas experiências que deram certo, mas pelo que me conheço não vai além disso.
8 – Num país onde se lê pouco e publica-se poesia como se estivessem fazendo um especialíssimo favor nem sei bem a quem, com livros que não chegam a cem páginas, como vês teus últimos livros, com mais de trezentas páginas conseguirem editor e atingirem o mercado consumidor?
Eu sempre vendi bem meus livros. A maioria da minha obra está esgotada. Quando planejei este livro seria “Os Sete Livros Capitais”, o que formaria setecentas páginas. Então dividi em dois volumes: Quarteto dos Mistérios, Amor e Agonias e Trilogia do Azul, do Mar, da Madrugada e da Ventania. No primeiro momento, quando apareci com o Quarteto um original de 400 páginas o Luis Gomes logo reconheceu a importância da obra, ornada pelo prefácio belíssimo de Gerardo Mello Mourão e de tua opinião colocando a obra somente ao nível do lirismo de Camões. Gomes deu três telefonemas, acredito para levantar custos gráficos e em quinze minutos me disse: vamos publicar toda a obra. Aquilo que a crítica chamaria de a Grande Arte de Luiz de Miranda. Além disso para a obra chegar ao público, a Sulina colocou preços bem acesíveis, vinte reais o volume.
9 – Os prêmios e destaques, inclusive internacionais, que já recebeste, falam do apreço que tua obra tem recebido, a ponto de, há pouco tempo, ter te citado como referência obrigatória para a própria poesia brasileira, do Romantismo a nossos dias. Como vês tua responsabilidade enquanto poeta, brasileiro e sul-americano em face a tudo isso?
Eu sou escritor que desde 1996, depois de uma viagem pela Europa, tenho me dedicado cotidianamente ao trabalho do poema. A dias que escrevo mais de um poema. Os prêmios, ora os prêmios, eles valem mais para cavalo de prado que tem o dever de chegar na frente. Mas são também o reconhecimento da comunidade cultural à minha dedicação à arte poética. Tenho prêmios nos Estados Unidos, Itália, Paraguai e Panamá. Mas os mais importantes me foram dado pelo povo de Porto Alegre. O meu interminável roteiro da paixão, a Câmara de Vereadores me concedeu por unânimidade de votação em 1988, o Prêmio Erico Verissimo, pelo conjunto da obra. Em 1997, recebi também por unânimidade de votação o título Cidadão de Porto Alegre. Essas honrarias da aldeia são as que mais me comovem. Como sabes eu tenho um garnde número de amigos. De um lado, os escritores e artistas que cruzaram minha vida e para os quais tenho dedicado meus poemas entre outros, Quintana, Faraco, Vinícius, Bopp, Gullar, Verissimo, Dyonélio, Romano de Sant’Anna, Moacyr Félix, Scliar, Tabajara Ruas, L. F. Verissimo, Bebeto Alves, Geraldo Flach, Ivan Lins e tantos outros. Mas eu sou um homem pobre, simples e não faço carreira literária e nem corte a literatos. Vivo em Porto Alegre onde sou conhecido de todo mundo. Certa noite fria de inverno descia o viaduto da Borges um lugar perigoso quando ascendeu um mendigo de um grupo que dormia: – Poeta, o senhor tem livro na feira ? Respondi que sim. Ele me olho e disse: Passarei lá para lhe dar um abraço. Em outro momento, caminhava à madrugada frente a Praça do Capitólio quando fui envolvido por uma gangue de trinta adolescentes que vinham para me assaltar, quando um do meio deles gritou: Este não, ele é o nosso poeta. Fatos como estes significam um prêmio de grande valor para mimha alma. Eu sempre vivi nos bares de Porto Alegre, levado primeiramente pela mão de Lupicínio Rodrigues, que em 1972 me nomeou Secretário da Noite, cargo vitalício. Não conheço grandes amizades que tenham começado em leiterias. O bar e a noite fazem a fusão perfeita para a amizade, o amor, a paixão, a loucura, para tudo o que transcende da alma. Para terminar vou repetir o que disse a uma entrevista gravada em 1987: A gente sempre tem a ilusão de que com a palavra e a literatura vai salvar as pessoas. Mas na prática não é bem assim. A gente deve tentar isso sempre, mesmo que a resposta social não seja a equivalente a isso. O destino dos homens que trabalham hoje com a literatura e a ternura da vida é o esquecimento. Isto é bem verdadeiro. Porque nada disso interessa ao mundo capitalista. A não ser quando o cara tem sucesso. Sucesso é outra coisa, não tem nada a ver com a obra de arte. Mas se tem sucesso torna-se considerado pelo mundo capitalista que gosta do brilho e do charme do escritor. Quando você escreve e ninguém lê, fica um testemunho. Mais tarde estas coisas serão recolocadas no mundo. Van Gogh nunca vendeu um quadro. Era sustentado pelo irmão Theo. Hoje, um quadro dele vale 80 milhões de dólares. Por que estes mistérios ? Você nunca sabe quando está tocando na luminosidade ou quando você está sendo esquecido. O importante é ser aquilo que se é, e tentar diáriamente sobreviver nesta coisa pungente e eterna que é a Poesia.